De acordo com a Organização Mundial do Turismo e a Unesco, o Turismo Cultural, Natural e Patrimonial é o setor que apresenta o maior e mais célere crescimento, agregando movimentos das pessoas em busca de motivações essencialmente culturais, tais como excursões de estudo, teatralizações e excursões culturais, viagens para festivais e outros eventos culturais, visitas a localidades e monumentos, viagens para estudar a natureza, folclore ou arte e peregrinações. Este potencial de crescimento pode e deve aproveitar à cidade de Angra do Heroísmo, quer pelo seu papel histórico, quer pelo património edificado e cultural que o testemunham.
Se aos turistas, que a visitam, a cidade oferece uma experiência de conhecimento, aprendizagem e fruição nos campos da História, da Cultura e do Património, para Angra, o incremento do Turismo Cultural irá aportar crescimento económico e desenvolvimento sustentável do território, especialmente através da conservação e preservação das suas infraestruturas. Enquanto os turistas satisfazem as suas necessidades culturais, usufruindo dos espaços, dos eventos, do comércio e da gastronomia, a cidade vai criando “uma nova imagem e um novo simbolismo, assim como uma economia de serviços, atraindo capitais e investimentos externos ao mesmo tempo que se tenta contribuir para a coesão da comunidade” (Pérez, 2009, p. 294). Como refere Xerardo Pérez (2009), o turismo cultural urbano está associado aos três ‘R’: requalificação, reutilização e revalorização, o que contribui para a regeneração da própria cidade.
De acordo com Pahos, Stamos e Kicosev (2010), “Cultural tourism has become recognized as an important agent of economic and social change in Europe” (p. 88) e, no caso de Portugal, as rotas ligadas à cultura, desde a gastronomia ao património edificado, têm vindo a ganhar dinâmica própria, sendo fundamentais para a afirmação da identidade e da memória (Rodrigues, 2018). Citando uma obra publicada pela Câmara Municipal da cidade de Angra do Heroísmo: “Ao deambular por Angra encontram-se, a cada passo, palpáveis ainda hoje, testemunhos de um antes e um depois, como se, perante novos desafios e conhecendo novas soluções, os povos aqui chegados tivessem decidido que era tempo de mudar” (1996, p. 9).
De uma traça inicialmente medieval, Angra mostrou desde cedo sinais de modernidade: os arruamentos paralelos ou perpendiculares, à maneira renascentista; a ausência de muralhas, compensada pela edificação de duas grandes fortalezas; a abertura para o mar e a ligação directa ao porto, bem como a orientação da nova Sé que, ao invés dos moldes medievais que determinavam a orientação do altar-mór para Jerusalém, ficou com uma fachada na direção norte, paralelamente à rua principal (Maduro-Dias, 1996). Por isso, como afirma Antonieta Reis Leite, a urbe angrense é um caso de estudo especial e paradigmático no âmbito do urbanismo português, atraindo o olhar de arquitetos, geógrafos e de historiadores (Leite, 2014).
Percorrer o centro histórico de Angra significa, pois, admirar e fruir de um conjunto edificado que abraça o casario tradicional a par da imponência de monumentos religiosos e civis, repletos de história e de simbolismo. Aqui ficam algumas sugestões, de modo algum exaustivas, de possíveis roteiros culturais de Angra.
PARA UM ROTEIRO DE ANGRA DOS DESCOBRIMENTOS À ÉPOCA DA CAPITANIA-GERAL
Segundo José Manuel Fernandes (2008a), a arquitetura erudita de Angra, inserida no conjunto do Arquipélago, “enquadra-se em termos mais gerais nas formas do ‘mundo Atlântico e insular’, com ramificações estilísticas que podem chegar ao Brasil, às Canárias ou à Península, sem deixar porém de depender profundamente da evolução específica da arquitetura portuguesa” (p. 60). A uma fase inicial de cariz Gótico-Manuelina, cujos vestígios já são escassos, encontramos uma época Renascentista-Maneirista, que se sobrepõe ao ‘Estilo Chão’ e que vai de 1570 ao século XVIII. Nesta época, e construídos entre os séculos XV e XVI, existiram pequenos fortes, fundamentais para a defesa da cidade, como o do Porto das Pipas [junto ao de S. Sebastião], o de São Cristóvão [junto à ribeira e cais da cidade], o das portas do Cais, junto à Alfandega, o da Prainha e o do Porto Novo. Todavia, a mais impressionante e grandiosa construção militar, edificada segundo o traçado do arquiteto João de Vilhena, é o Forte de São Filipe, rebatizado de São João Batista após a restauração da independência portuguesa relativamente ao domínio espanhol (Fernandes, 2008a).
Dominando as duas baías, do Fanal e de Angra, podendo isolar-se tanto do Monte Brasil, como da cidade, constitui a fortaleza portuguesa que delimita maior área, atingindo toda a extensão das suas muralhas cerca de uma légua. A fortaleza possui de qualquer modo uma escala ‘transoceânica’ que, me monumentalidade e grandeza, ultrapassa de algum modo a tradicional dimensão da arquitetura portuguesa, para a aproximar de uma escala mais ‘ibérica’ [...]. (Fernandes, 2008a, pp. 62-63).
A partir de 1570 fez-se substituir a igreja matriz de São Salvador pela nova Sé, na sequencia da elevação, da cidade, a sede episcopal, em 1543, sendo certo que ambos os edifícios coexistiram e que a primeira chegou a desempenhar o papel de catedral (Reis Leite, 2014). A Sé, construída entre 1570 e 1618, foi recuperada em 1985, após o terramoto e incêndio que destruíram, infelizmente, grande parte da sua talha e espólio. O projeto, segundo traço do arquiteto Luís Gonçalves, revela uma fachada e estrutura maneiristas, com uma planta de três naves, pilares em vez de colunas e cobertura de madeira. Na fachada, sobressaem a galilé e as torres sineiras, rematadas por coruchéus de base octogonal (Fernandes, 2008b). Yves Bottineau compara-a com o frontispício e a escadaria da Igreja do Colégio de S. Salvador da Baía, no Brasil (Fernandes, 2008a). Uma estátua do Papa João Paulo II, da autoria do escultor micaelense Álvaro França, colocada no adro, do lado esquerdo, evoca a visita papal de 1991.
No âmbito da arquitetura religiosa, destacam-se, para além da catedral, a Igreja da Conceição, a da Misericórdia, a da Fortaleza de S. João Batista (1642), o conjunto dos Franciscanos (1663-72) e o convento de S. Gonçalo (1730-50), junto ao Alto das Covas. A primeira, que está classificada como Imóvel de Interesse Público, ter-se-á tornado sede de paróquia em 1553 e inclui antigos e importantes retábulos, de reconhecido valor artístico. A segunda, da Misericórdia, igualmente classificada, não é o templo original de quando foi constituída esta irmandade - uma das primeiras de todo o Portugal. A atual igreja data do século XVIII, tendo abrigado a Ordem de Nossa Senhora do Carmo. De planta retangular, apresenta uma fachada ladeada por duas imponentes torres sineiras, com cobertura em pedra.
A Igreja de S. João Batista, implantada na Praça de Armas, da Fortaleza, foi o primeiro monumento erguido após a restauração da independência de Portugal e dada a sua relevância histórica, é de visita obrigatória para quem passa por esta fortificação. Destaca-se pela sua dimensão e robustez (Raimundo, 2014). Igualmente obrigatória é a visita ao conjunto dos Franciscanos [convento e Igreja] que, hoje, são imóveis classificados e integram o principal Museu da cidade de Angra, depois de, durante décadas, terem funcionado como Liceu e, ainda, como Seminário Diocesano. O templo é de considerável dimensão [um dos maiores dos Açores], com planta de três naves, em cruz latina. O convento foi sede da ordem franciscana nestas ilhas, cuja presença remonta ao século XV.
Já o Convento de S. Gonçalo foi fundado por volta de 1545, sendo um dos mais antigos da cidade e o primeiro destinado a freiras da Ordem de Santa Clara. É o maior conjunto conventual de Angra e um dos maiores dos Açores, devido ao grande aumento do número de religiosas, ao longo dos séculos XVII e XVIII. Possui dois claustros, cerca, granéis e a igreja, com os coros alto e baixo. Esta, de nave única, sobressai pelo seu estilo barroco, destacando-se: a abertura oval do coro, o cadeiral do coro alto com figuras fantásticas; os painéis de azulejos portugueses [séc. XVIII] e o notável revestimento em talha, telas e teto pintado (Raimundo, 2014).
Mas, este Roteiro não ficaria completo sem uma passagem pela Casa do Capitão ou dos Corte-Real e pelo Palácio dos Capitães-Generais, anexo à Igreja do Colégio dos Jesuítas. Nas imediações da Praça Velha, subindo o eixo da rua Direita, deparamo-nos com estes grandiosos e simbólicos edifícios (Fernandes, 2008ª). A Igreja, imóvel classificado, está implantada no cimo de ampla escadaria e apresenta uma fachada sóbria, sem torres, rematada por falsa balaustrada. De nave única, é coberta por um magnífico teto em caixotões de madeira e apresenta ricas pinturas, talha, painéis de azulejos e um imponente órgão. Em anexo, o Palácio - outrora Colégio da Companhia de Jesus - representou, a partir de 1766, a sede do poder civil no arquipélago. Além de ter albergado os Capitães-Generais que dominaram as ilhas, foi também Paço Real, quer de D. Pedro IV, de Portugal [Primeiro do Brasil], quer de D. Carlos e D Amélia, em 1901. O visitante pode apreciar obras de arte dos séculos XVIII e XIX, configuradas em valiosas peças de mobiliário, telas e porcelanas.
Ainda no âmbito da antiga arquitetura civil, para além da Casa do Capitão, de estrutura quatrocentista, destacam-se o Solar dos Remédios e o Solar da Madre de Deus. O primeiro, situado no Largo com o mesmo nome, foi, ao longo dos tempos, sucessivamente ampliado e modificado. A sua construção iniciou-se no século XVI, com Pêro Anes do Canto, 1º Provedor das Armadas, mantendo-se na posse da família até ao século XIX. Servia de residência e também de Provedoria, prestando, assim, apoio às Armadas vindas da Índia e de outras paragens, bem como à própria Armada das Ilhas. O conjunto é composto pelo solar e capela, ambos de grande dimensão e situados numa plataforma elevada que permite uma privilegiada visibilidade sobre a cidade. Foi no século XVIII que adquiriu a configuração semelhante à que apresenta nos dias de hoje. Após o sismo de 1980 sofreu também uma grande intervenção devido aos graves danos provocados. O Solar da Madre de Deus, no lado oposto da cidade, junto ao Alto das Covas, foi implantado também numa plataforma elevada, representando um misto entre residência urbana, solarenga e propriedade rural, que se prolongava para norte. Foi erguido no século XVII, pelo Capitão-Mor de Angra e a longa fachada, de composição simétrica, inclui a Ermida de evocação a Nossa Senhora, Madre de Deus (Raimundo, 2014). Ao longo dos séculos XVII e XVIII o património edificado da cidade foi sucessivamente enriquecido com outras construções solarengas, que se podem observar nos trajetos pedonais, como o Solar das Salinas, o Palácio Bettencourt, entre muitos outros. Esta evolução prosseguiu no século XIX.