© Leonardo Negrão / Global Imagens

 

 

"Temos uma Angra saída das ruínas mais próxima das raízes do que a que existia na manhã do sismo"

Angra do Heroísmo, a principal cidade da ilha Terceira, sofreu um terrível terremoto no primeiro dia de 1980. Mas num tempo recorde, a reconstrução exemplar valeu-lhe ser reconhecida como Património da Humanidade pela UNESCO, faz agora 40 anos. Álamo de Meneses, cientista e professor que cumpre o terceiro mandato como presidente da câmara, falou com o DN durante a GlexSummit, evento internacional ligado ao Explorers Club de Nova Iorque e à Portuguesa Expanding que passa a ter sede na cidade açoriana.

Como consegue explicar o milagre de menos de quatro anos depois do grande sismo de 1980, Angra do Heroísmo ter sido reconhecida como Património da Humanidade pela UNESCO, faz agora 40 anos?
Esse milagre é este ano o tema das Festas Joaninas, e a figura que escolhemos é a Fénix, como sinal do renascimento. Isto porque um dos escritores clássicos daqui publicou há quase 400 anos um livro chamado Fénix Angrense. Porquê? Porque ele escreveu pouco depois da Restauração e naquele período também muito complexo da conquista do castelo. Aliás, ele escreveu aqui na década de 1640, num período em que encarava a cidade como a cidade que tinha renascido da guerra e da destruição que a guerra com os espanhóis tinha trazido.Os Filipes resistiram aqui mais tempo do que noutras partes?

Exatamente. Aqui a Restauração aconteceu em março de 1642, e depois de um ano de cerco ao castelo, com guerra a sério, e, portanto, a cidade tinha uma guarnição espanhola forte, que ficou aqui e tentou tudo para resistir. Entretanto, o Estado, o Reino de Portugal, estava empenhado na defesa das fronteiras do Alentejo e não veio logo cá. Portanto, foram os locais que cercaram o castelo e o conquistaram. Aliás, o Padre António Vieira, num sermão que pregou aquando das exéquias de D. João IV, disse uma frases que agora nós usamos muito, que é uma frase emblemática, fala no exército de lavradores, que sem tropa paga conseguiu conquistar a maior fortaleza que existia.

Houve, portanto, uma primeira vez que Angra renasceu das ruínas...
Sim, e, portanto, agora olhando para 1980 e para a destruição causada pelo sismo, de facto Angra renasceu das ruínas, e renasceu das ruínas depressa e com muita qualidade. Quando Angra foi classificada, em finais de 1983, estávamos em pleno processo de reconstrução. Aliás, a reconstrução ainda não terminou, ainda temos alguns edifícios em reconstrução e, este ano, vamos inaugurar numa celebração dos 40 anos a reconstrução da igreja do Convento das Concepcionistas, que ficou destruída desde essa altura e que foi agora reconstruído. Está quase a acabar, mas ainda não acabou e diria que a próxima década ainda vai ser uma década de reconstrução, porque o sismo destruiu praticamente tudo o que eram edifícios notáveis e mais de 80% das estruturas construídas na cidade. Estamos a falar de uma destruição generalizada. Daí a história da Fénix, não renascida das cinzas, porque não foram cinzas, mas sim das ruínas.

Então, quando a UNESCO reconheceu em dezembro de 1983 esta cidade como Património da Humanidade, estava a reconhecer um processo de reconstrução que considerou ser bem conduzido?
Estava a reconhecer um processo que consideraram exemplarmente bem conduzido, mas os critérios que levaram à classificação de Angra são critérios que não são estritamente de caráter material. Angra é reconhecida como sendo um dos elos essenciais na exploração europeia pelo mundo. E, portanto, neste reconhecimento, nesta inscrição na lista, estamos a colocar, obviamente, um objeto material, uma cidade, mas estamos a colocar uma história e um papel feito a nível daquilo que foi a exploração do mundo, a primeira grande exploração do mundo conduzida, essencialmente, nesta nossa zona pelos portugueses, e o papel que ela teve na criação da primeira globalização.

 
Portanto, é, em grande parte, uma paragem obrigatória para as caravelas que regressavam da Índia.

Obrigatória, no regresso de quem vinha do hemisfério sul, aliás, um dos nossos historiadores descreve a cidade como "a escala universal do mar ponente". Ou seja, todos os navios que navegavam no mar do Oeste, Oeste de quem está na Europa, obviamente, tinham de passar aqui, porque essa é a circulação dos ventos aqui na Bacia do Atlântico, portanto, obrigatória.

Essa escala obrigatória dos navios deixou algumas marcas, por exemplo, na própria gastronomia, porque usam mais especiarias do que as outras ilhas, não é?
Deixou marcas em tudo e diria mesmo, embora não haja nenhum estudo genético ainda credível feito, até na nossa genética, porque, na verdade, nós que vivemos nestas ilhas, somos o produto da miscigenação de gentes vindas de todo o lado, da mesma maneira que as especiarias chegavam, chegavam cá as pessoas e foram-se integrando nesta comunidade. Nós somos uma comunidade que nasceu, de facto, dessa relação. Foi uma relação a nível global, ou seja, por aqui passou todo o grande tráfego da América do Sul, todo o tráfego da Ásia pelas rotas do Cabo, portanto, por aqui passou tudo o que veio de África. É o caminho da Europa, portanto, estamos aqui num lugar que foi um ponto essencial no suporte desta expansão da humanidade. E foi isso que levou a UNESCO a considerar que apesar da destruição, apesar de tudo o que estava a acontecer, Angra merecia ser incluída nesta prestigiosa lista.

Quase que o sismo foi aquilo que chamou a atenção para a importância de Angra.
Na verdade, diria que se não tivesse acontecido o sismo, provavelmente as coisas não teriam corrido assim. O sismo foi o grande catalisador, primeiro, para os próprios angrenses reconhecerem a sua própria cidade. De facto, quando chegamos a uma cidade e a vemos todos os dias, tendemos a esquecer aquilo que ela tem, passamos pelos sítios e nem os vemos. A verdade é que a destruição da cidade desencadeou a nível local um grande debate. O debate de vamos reconstruir como? Vamos aproveitar para alargar estas ruas estreitas e fazer ruas novas e transformar isto numa cidade moderna? Ou vamos reconstruir o que tínhamos? Esse debate existiu. E foi em pleno debate que um grupo de notáveis angrenses, que estavam ali agremiados em torno do Instituto Histórico da Ilha Terceira, liderou a candidatura a Património da Humanidade. Se a candidatura não tivesse tido sucesso, provavelmente esta Angra que temos hoje não seria a mesma, porque provavelmente o que teríamos seria uma Angra construída com os cálculos do século XX, os fins do século XX e não a reconstrução da Angra seiscentista que hoje vemos. Portanto, há aqui um cruzar de forças e um debate que foi um debate duro.

A classificação pela UNESCO traz restrições e limites muito severos a quaisquer obras nas casas?

Traz restrições e particularmente quando as casas estavam todas destruídas, em que muitos proprietários vieram e disseram que esta é a oportunidade de ter uma casa maior, esta é a oportunidade de ter aquelas janelas que queria e não estas pequenas que tenho, esta é a oportunidade de ter aquelas casas de banho que queria ter e que só tenho uma ali atrás. Portanto este processo foi um processo que gerou também debate interno. E esse debate teve um efeito muito bom, que foi a consciencialização dos residentes para o valor da cidade. Hoje há um grande orgulho , houve um aumento muito substancial da nossa própria autoestima. Ou seja, deste debate e destas decisões nasceu o autoconhecimento e nasceu um interesse pelo passado, pela própria história da cidade que ao tempo era praticamente desconhecida. Não se esqueça que o Estado Novo fez o possível para apagar as histórias locais e criou-nos aquela história higienizada dos santos e dos heróis. E, portanto, tínhamos saído da Revolução há seis anos quando o terramoto aconteceu. Os açorianos descobriram-se a si próprios, porque quando andei aqui na escola primária andei a estudar rios que nunca vi, linhas de comboio - comboios que nunca tinha visto na vida -, e, portanto, tivemos um ensino muito uniformizador e muito pouco respeitador das realidades locais. E isto pode ser dito em qualquer ponto do país. E aqui, no caso dos arquipélagos, obviamente tem um significado muito especial porque nós estamos num ambiente muito distinto. E isso levou a uma enorme ignorância da história local, pouca gente era capaz de se lembrar ou de dizer o que aconteceu aqui. E estes acontecimentos fizeram com que hoje qualquer pessoa na rua fale de histórias, mesmo em coisas tão pequeninas como ouvir o relato de futebol, e dizem sempre que na cidade Património da Humanidade jogou o A com o B, etc. Quando chegou a este ponto, quer dizer que se massificou verdadeiramente este conhecimento da história da cidade e isso foi muito bom.

Há alguns edifícios mais emblemáticos em que a reconstrução tenha sido especialmente difícil?
Começaria talvez por um dos mais emblemáticos edifícios da cidade que é a Catedral. A reconstrução da Catedral correu mal. Quando a obra estava em curso, uma das torres desmoronou-se e a seguir houve um incêndio.

Foi pior ainda a destruição pelo fogo do que a causada pelo sismo?
Foi muito pior do que o sismo e particularmente levou a uma perda irreparável naquilo que eram os elementos de madeira, as talhas, os tetos. Um azar gigante. Este foi um edifício com uma reconstrução estranhamente complexa. Outro edifício cuja reconstrução, nesse caso, é um exemplo positivo do sucesso, são os Paços do Concelho, que estão meticulosamente reconstruídos, meticulosamente conservados, mas que também remanesceram de danos gravíssimos naquela altura, mas que se conseguiu com sucesso.

Os Paços do Concelho têm um espólio muito rico, até porque Angra do Heroísmo foi muito acarinhada pela Monarquia Constitucional pelo papel no triunfo do liberalismo. O que está lá hoje é original?
Sim, felizmente, com exceção da catedral em que as perdas foram irreparáveis, as perdas do fogo, no resto da cidade, os bens móveis, a maior parte conseguiu-se salvaguardar, embora se tenha perdido muito dos bens privados, ou seja, naquela ânsia da reconstrução, nas complicações que vieram a seguir, mobílias que hoje não teriam preço, livros que hoje não teriam preço, enfim, bens das pessoas que os tinham, quase tudo se perdeu. Uma boa parte dos bens públicos conservaram-se, mas obviamente as coisas não são perfeitas, nem tudo correu perfeito, mas, na generalidade, as coisas foram bem. Mas a verdade é que a reconstrução também trouxe, mesmo na vertente privada, a recuperação de traças que se tinham perdido. Naquela altura, tinha sido moda, nos anos 60, fazer aquelas grandes montras que recortavam o prédio todo no rés-do-chão. Muitos dos prédios da Rua da Sé, aqui da Baixa, estavam profundamente adulterados por adaptações que tinham sido feitas nas duas décadas anteriores. Felizmente, foi possível reverter isso, e hoje temos uma Angra saída das ruínas que está muito mais próxima das suas raízes e da sua estrutura original do que a Angra que existia na manhã do terramoto. Portanto, há aqui também grandes ganhos do ponto de vista do fortalecimento. Por isso é que dizemos que Angra renasceu mais forte, tal como a Fénix que arde para se rejuvenescer. No nosso caso, a nossa cidade caiu para ser melhor.

"Muitos dos prédios da Rua da Sé, aqui da Baixa, estavam profundamente adulterados por adaptações que tinham sido feitas nas duas décadas anteriores ao sismo. Felizmente, foi possível reverter isso."

Como é que foram os financiamentos para a reconstrução? A nível nacional, a nível local? Como é que chegaram?

A maior parte dos financiamentos foram feitos através de empréstimos. E o que aconteceu foi que, sendo empréstimos com juros bonificados, nos anos seguintes a inflação foi tão grande que quase que pagou os empréstimos. Ou seja, na verdade, com a desvalorização do dinheiro que aconteceu a seguir, e como eram juros fixos, as pessoas não foram afetadas por aquela gigantesca subida de juros da década de 1980. E ao fim de uma década, a dívida que as pessoas tinham era relativamente irrelevante. Ou seja, algo que, quando as pessoas contraíram a dívida parecia que era um problema para a vida toda, felizmente não foi.

Quando se pensa na Terceira, pensa-se muito no papel que teve a base das Lajes na economia da ilha, e hoje, obviamente, já não é o mesmo contributo. Angra, turisticamente, beneficiou da reconstrução, ou seja, do novo prestígio?
A cidade de Angra, com a inscrição na lista da UNESCO conseguiu um lugar a nível internacional que uma pequena cidade nunca teria. Ou seja, eu, como presidente da Câmara de Angra, tenho uma presença internacional e uma participação em fóruns que nunca teria. Esse estatuto é dado por Angra. Ou seja, na verdade, Angra tem uma voz que não tem nada a ver com a sua dimensão demográfica nem com aquilo que é a sua realidade física. E isso tem sido extremamente importante na promoção. Aliás, eventos como este que vivemos esta semana, a Glex Summit, que vai ter sede em Angra do Heroísmo, acabam por ser também um resultado disso. Ou seja, Angra conseguiu afirmar-se no contexto das Cidades Património Mundial como uma cidade exemplar. Já fui vice-presidente desta organização, ou melhor, a Câmara de Angra já foi, e a verdade é que temos sempre tido participação ativa na Organização das Cidades Património Mundial que a nível planetário reúne as cidades que são património mundial ou que têm bens de património mundial. E isso é, digamos, uma presença extremamente relevante e que nos dá uma visibilidade que de outra forma não tínhamos.

Mas essa visibilidade e boa reputação têm repercussão económica?
A repercussão económica não é tão direta, mas existe com certeza. A verdade é que a cidade de Angra atualmente, depois de ultrapassadas as questões da covid-19, enfim, todas estas crises sucessivas que a nossa sociedade tem atravessado, tem conseguido manter uma estabilidade económica que provavelmente não teria se não fosse este estatuto e esta presença. E mantemos muitas expectativas em relação ao futuro, especialmente porque nos queremos posicionar numa posição um bocadinho diferente da generalidade das ilhas, ou seja, uma ilha em que o turismo tem um patamar um bocadinho mais elevado e não estamos tão preocupados com a massificação do turismo, mas mais com a qualidade daquilo que temos para oferecer e obviamente com o retorno económico que esse tipo de atividade nos pode trazer. Portanto, há aqui da parte do município, e diria mesmo, em resultado desta classificação, destes 40 anos já de experiência enquanto cidade Património Mundial, temos uma larga aprendizagem que nos diz que este é verdadeiramente um trunfo e é um trunfo que temos usado com grande sucesso e que continuamos a usar.

As Festas Joaninas vão ser dedicadas à Fénix, como disse. Há mais algum tipo de celebração previsto dos 40 anos de reconhecimento?
A data exata da celebração será o dia 7 de dezembro, quando se cumprem os 40 anos, mas temos tido ao longo deste último meio ano conferências, exposições e outras atividades, de modo que em que todos os meses temos algo que lembra esta classificação, que lembra as responsabilidades também da ideia, porque é preciso não esquecer que esta questão da classificação não é um caminho unidirecional, obviamente que nos traz grandes vantagens, mas também nos traz grandes obrigações e a necessidade de uma gestão muito criteriosa e muito dura às vezes.

A população ajuda na defesa desta Angra fiel às raízes?
A população ajuda, a grande maioria dos angrenses interiorizou esta questão do património e hoje considera isso uma vantagem sua, portanto, falando com qualquer pessoa na rua, imediatamente a questão do património vem à superfície. Diria que se conseguiu um amplo consenso em torno desta classificação e em torno do caminho que é preciso seguirmos, que tem de ser um caminho de modernização. É que, neste momento, o grande desafio que se coloca às cidades património mundial é sermos cidades vivas. Uma cidade património mundial não é um espaço que possa ou deva sequer ser musealizado e transformado em ruínas tipo Pompeia. As cidades têm de viver e para que as cidades vivam têm de gerar a economia, porque a economia é que suporta a demografia. Uma cidade que não tem economia, rapidamente entra em degradação. Se queremos ter edifícios bem mantidos e queremos ter uma cidade bem mantida, ela tem de ter uma vitalidade económica que gere os recursos que são necessários para isso.

"Uma cidade património mundial não é um espaço que possa ou deva sequer ser musealizado e transformado em ruínas tipo Pompeia. As cidades têm de viver e para que as cidades vivam têm de gerar a economia, porque a economia é que suporta a demografia."

Quantos habitantes tem a cidade?

Aqui a zona central da cidade anda por volta dos 13 mil habitantes. Grosso modo é aquilo que consideramos a cidade, embora seja um pouco difusa, na verdade a cidade ocupa aqui esta zona central da Costa Sul, sem limites muito bem definidos, mas a criação da circular externa da cidade, de alguma maneira, criou uma espécie de limite físico, que hoje reconhecemos como as fronteiras da cidade. Temos cerca de 13 mil pessoas a viver desse limite para dentro, entre esse limite e o mar. Portanto, esta é a dimensão da cidade, mas é uma cidade que é de facto uma das co-capitais do arquipélago. Temos aqui o representante da República e alguns dos departamentos do Governo Regional, e é uma cidade que tem um efeito que não se limita apenas ao território da Ilha Terceira. É a cidade, é o hospital e são os serviços que servem aqui a generalidade das ilhas do Grupo Central. Portanto, é de facto uma cidade que tem uma polarização que excede as fronteiras da própria Ilha Terceira, e se estende às ilhas vizinhas, e isso faz com que seja neste momento o maior polo gerador de emprego na ilha. Ou seja, temos um movimento pendular da ilha toda, incluindo da cidade vizinha da Praia da Vitória para Angra, porque é aqui que estão os empregos. E o grande desafio é exatamente esse, manter a cidade viva, e particularmente uma coisa que é fundamental, que é manter a cidade atualizada. O património não é estático, da mesma maneira que estamos muito orgulhosos do património que nos legaram os séculos anteriores, esperemos que daqui por um século ou dois estejam igualmente orgulhosos do património que nós gerámos para o futuro. E esse é, neste momento, o grande desafio da cidade.

O DN viajou a convite da GlexSummit

Entrevista da autoria de Leonídio Paulo Ferreira, em Angra do Heroísmo publicada na edição do Diário de Notícis de 18 Junho

Pin It

SOTERMAQUINAS